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sábado, 31 de março de 2012

CONFUSÕES DO SACRISTÂO - Diário da Manhã - 31/3/2012

CONFUSÕES DO SACRISTÃO


Lêda Selma


A igrejinha, como sempre, cenário dos grandes acontecimentos. E das grandes emoções. Visitada diariamente por donzelas inconformadas com suas donzelices crônicas, tinha, como destaque, no altar à direita, o preferido das solteironas, o alcoviteiro-mor, Santo Antônio, padroeiro municipal e afamado arranjador de casamentos. À esquerda, com a timidez ou cara de preguiça, à mostra, São Benedito, cujas habilidades santísticas, francamente, desconheço.

O coitado – coitado! – (refiro-me a Santo Antônio), sequer dispunha de um minutinho de folga para suas necessidades mais básicas. As casadouras não lhe davam trégua. Tampouco, os desmazelados que, volta e meia, perdiam até a conta de suas perdas, convertidas em futuros achados, por obra e competência do santo, apelidado, carinhosamente, de dois-em-um. Porém, seus ouvidos suplicavam por um descanso, exaustos de tanto ouvir lenga-lengas intermináveis.

O estoque de donzelas parecia nunca se esgotar, pois havia sempre alguma à cata de marido. Assim como as tais “coisas perdidas” que se amontoavam e geravam piedosos pedidos e, consequentemente, farturentas promessas. Plantão, pois, diuturno, o do pobre. E cansativo. É, vida de santo não deve ser fácil mesmo. A do santo polivalente, então...

Acostumado a testemunhar os apelos das donzelas insatisfeitas e com os desejos queimosos à flor de seus recantos secretos, o sacristão peralta, que muito gostava de se imiscuir na vida alheia (e já enfarado de tanto ouvir as mesmas lamúrias), resolveu fazer mais uma das suas, ao ver certa esperançosa, cujas vontades também saltavam das protuberâncias intumescidas, embicadas sob o decote da blusa, desviar-se do santo casamenteiro, ajoelhar-se diante da Virgem Maria e pedir-lhe:

– Minha Santa, quero tanto um homem bom (e olhe, não precisa ser respeitador), desimpedido, carinhoso e aliviador dessa quentura que me desassossega as intimidades, me aperreia o sono e destrambelha meus sonhos. Me ajude, Mãe! E não me venha indicar aquele santo embromador, não, o tal Santo Antônio, porque dele já estou descrençada. Só conto mesmo é com a senhora pra me tirar dessa consumição, e dessa sina que me condenou ao desuso. Morrer no caritó, com selo original de fabricação, que até já deve estar vencido, é muito desprivilegio, minha Mãe. Não permita que eu termine meus dias como uma rebenqueada da sorte, por piedade! Portanto, marido já, se avie, ande!
Escondido atrás da imagem de São Benedito, para confundir a queixosa da vez, o sacristão, com a voz adulterada, e fazendo-se passar pelo santo, aparteou:
– Não ajuda não, Nossa Senhora! Deixa essa aí morrer endonzelada, avexada e sem as serventias que ela muito deseja.

– Cala a boca, afro enxerido, santo destruidor da ilusão alheia, que não tô falando com você nem com esse seu pareceiro incompetente, visse? Tô falando é com a Virgem, que, apesar de virgem, é mulher que nem eu e deve entender das minhas precisões...

Mas o sacristão tinha também suas manias e excentricidades. Supersticioso, colocava, todas as noites, as alpercatas de frente para a porta, como se estivessem de saída e, a seguir, pendurava a velha boina cor de ferrugem, no trinco, sempre com a aba para cima. Ah! antes de dormir, tomava ‘uma dose dobrada de chapuleta’, e dava um gole gordo ao Santo, sempre com o mesmo argumento: “Um agradinho ajuda o santo a se alembrar dos amigos na hora das necessidades. Só periga, como de certa feita, eu, já trolado, exagerar na dose do santo, e ele ficar azuretado, de pileque”.


Momento poético:

Mesmo os corações blindados,
as palavras ferem como baionetas.
São devastadoras se infames
e mortais quando silenciosas.

sábado, 24 de março de 2012

Diário da Manhã - 25/3/2012

AMBIGUIDADES

Lêda Selma

A língua portuguesa (especialmente, a “brasileira”) é rica em apelidos. Tanto para nomes próprios quanto para comuns. E o pior: a maioria nenhuma relação possui com o original. Na Bahia, então... Laurinda vira Lousinha; Maria, Lica; Olga, Pequena; Emília, Bida; Justina, Sussu; Esmerilda, Catita; Escolástica, Tatá; Tomasina, Totote; Zenóbio, Sinhô; Almerinda, Nana... Para moça desdonzelada por vontade das quenturas íntimas, um acervo e tanto de significados: deu um mau passo, perdida, desonrada, sem lacre, bulida... E as que se firmaram no ofício da ‘perdição’: quenga, mulher corrida, mulher de rebuço, decaída, ervoeira, ambulatriz...

Outras preciosidades dão um certo charme à famosa cachaça, muito conhecida como pinga e, também, como aguardente ou branquinha: ventania, fôlego-quente, matusquela, tiririca, aço, água-dura, água-bruta, água-de-briga, baronesa, tiúba, sinhazinha, arromba-peito, quebra-goela, gafanhoto, brutamontes, donzela, tasca-aqui, lambisgoia, reco-reco, abstinência, quero-colo, xixi-de-cobra, samba-enredo, lusco-fusco...

Apelidos, codinomes, alcunhas, pseudônimos, cognomes, criptônimos... não importa. O certo é que, às vezes, causam tremendas confusões e ambiguidades, como no caso de determinadas bancárias, muitas delas “letradas”, algumas, incautas, outras, místicas e, em comum, adeptas ou fanáticas por cartomancia, quiromancia, numerologia, tarologia e tantas outras enganologias (os demais adeptos perdoem-me o ceticismo).

Pois não é que as tais codificaram umas fugidas suspeitas, em pleno horário de serviço, e acabaram arranjando a maior confusão? E, justo, com o austero gerente do banco, homem de aparência mal-ajambrada, rosto sem riso. voz áspera e inquisidora:

– Cadê a Inocência?

– Foi ao cardiologista.

– Então, chame a Vivalda.

– Saiu um pouquinho mais cedo para ir ao cardiologista.

– Peça à Credulina para vir à minha sala.

– Impossível! Ela marcou horário com o cardiologista.

Preocupado com tamanha incidência de visitas ao tal especialista, o jeito, decidiu o gerente, investigar o problema responsável pela evasão das bancárias durante o expediente. Para tanto, convocou, com a urgência aparentemente requerida, o cardiologista do banco para um checape nas funcionárias, já aventando algumas hipotéticas causas: excesso de trabalho, preocupações familiares, problemas financeiros, estresse, baixo salário, pressão do chefe, arrelias conjugais...

Estetoscópio, pra que te quero...?! O médico começou a examinar as pacientes, auscultando-as. Uma, duas, três... e nem o menor indício de problema. Surpresa geral: em nenhuma das checapeadas detectou-se qualquer anomalia cardíaca. Nem um soprinho básico, nada. Nada...?! E a taquicardia? Taquicardia até intrigante. O coração De Inocência, de Vivalda e Credulina, acelerado que nem velocista em dia de competição, ou vento em rota de fuga, ribombava. Lívidas e trêmulas, as examinadas aguardavam o veredito médico.

Desentendidos, o gerente e o doutor quiseram saber o que estava acontecendo, interpelando-as. Quiseram. E ficaram querendo, roídos pela curiosidade, pois as ‘taquicárdicas’ não ousaram destravar a explicação, nem desatar o pacto silencioso que lhes impunha cumplicidade. O coração, entalado na garganta, ou na boca, em contínuo saio não saio, por certo, o maior impedimento para o segredo escapulir.

Mas, na surdina, e sob discrição, uma olheira contumaz rompeu o silêncio quase sepulcral, e decifrou o impasse.

Bem, como não assumi compromisso de guardar segredo, sinto-me livre para espalhar o acontecido: as crédulas irrecuperáveis deram aos tais ‘bem dotados de espírito’, também conhecidos como videntes, cartomantes, tarólogos (às vezes, charlatões) o apelido-disfarce de ‘cardiologista’. Por precaução e, mais ainda, por esperteza, claro! Principalmente, porque as saídas para as “consultas” davam-se à hora do trabalho. Portanto, algumas das taquicardias detectadas, durante o exame, estavam mais do que esclarecidas. E o medo de serem descobertas e apanhadas com as calças, ou melhor, com as cartas na mão?

Momento poético:

O medo me induz ao caos,
o sonho, à ousadia.
No medo, guardo silêncios;
no sonho, pecados.
No fosso, minhas sobras.

sábado, 17 de março de 2012

Diário da Manhã - 18/3/2012

ORA, BOLAS!

Lêda Selma

Bola? Não, não queria ser, de jeito maneira. Até porque ela é gorda, desengonçada, bochechuda. Nem elegante nem estilosa. Menos ainda, se chamada de bolota...

Sem dúvida, a dama dos gramados tem poder, o que a faz sentir-se com a bola toda. Sem modos, dá bola a vinte e dois homens, simultânea e levianamente, e rebola, embola-se com eles na grama, passando de mão em mão, de pé em pé, insinuante, em boleios de volúpia, deixando seus súditos às tontas, ou, como se diz no Rio Grande do Sul, “como bola sem manicla”. E assim, com a bola cheia, age, às vezes, como se não batesse bem da bola.

Verdade seja dita: não é fácil ser bola. A pobre não tem sossego: é bolinada, chutada, pisada, manipulada; ora amada por vários, odiada por uns, desejada por tantos, temida por muitos; ora acarinhada, beijada, cortejada. Tudo isso, claro! deixa-a bolada.

Ah! e os vexames por que já passou em função dos mal-entendidos e do uso inconveniente de seu nome!? “O treinador levou bola nas costas”. Sim, e daí? O que a gordota tem com a maldita traição?! Azar o do traído, ora bolas! De outra vez, alardearam: “Ele comeu a bola”! Isso foi demais, que acinte! Um bolodório daqueles, até que a explicação veio: “O jogador é bom, fez jogadas primorosas!”. Que alívio! No entanto, se for o cão que comeu bola, aí, o pobre já virou extinto.

De novo, constrangimento: “Então, você entrou com bola e tudo?”. Baita indelicadeza! A bola da vez merecia mais respeito. Entretanto, logo trataram de explicitar: “O atacante, voraz, driblou o goleiro, e entrou no gol com a bola”. Ufa!

Certo engraçadinho confundiu todo mundo: “Hum... aquele, lá, engoliu a bola!”. Para sossego da própria e dos ouvintes, o fulano referia-se a uma bela jogada do companheiro.

Sustos? Alguns. Foi o grito quem anunciou: “Bola ao alto”! Quem não se apavoraria, imaginando-se assaltado?! Felizmente, tratava-se, apenas, do lançamento da bola entre dois jogadores. Doutra feita, alguém enfatizou: “Bola presa”! Nossa, até a ficha cair, a pobre já se viu algemada. Mas, no rolar da bola, ficou claro: nada mais que simples infração. Todavia, susto, susto, ela levou ao ouvir o tom desesperado: “Ai, ai, ai, machuquei as bolas!”. Bem, nesse caso, a vítima dispensou quaisquer comentários. Mas que deu dó, ah! deu!

Tudo isso, no entanto, é fichinha perto de situações muito piores e que, de uma forma ou de outra, mesmo por tabela, deixam a bola em posição incômoda. Aconteceu quando diversas “Excelências”, a tevê e os jornais disseram, “levaram bola”! Não, não surrupiaram a bola; o tal surrupio foi bolada mesmo, bolada farta, espalhada na cueca, nas meias, na bolsa, na mala, também conhecida como suborno, propina. Essas “Excelências”, políticas, empresariais, judiciárias e policiais, sempre bolam formas mirabolantes de fraudar o país. Assim, pisam feio na bola. Merecem bola preta esses bolas murchas!

Há, entretanto, outro tipo de bolada, estilo pancada mesmo, que atinge a maioria dos brasileiros, a cada imposto, a cada CPI, a cada sessão extraordinária ali, lá e acolá... O jeito, partir para o bolão na tentativa de diminuir o prejuízo. Arre, é tanta bolação que corro o risco de até trocar as bolas!

O importante é que, de bola em bola, o gol enche a rede para a felicidade geral das cores e distintivos. Que assim seja na Copa de 2014. Mas, por favor, Seleção, chega de bola quadrada, tamanhos vexames estão virando bola de neve, credo! Mano, você periga receber uns bolaços, hem?! Então, bola pra frente!

Não tenho bola de cristal, mas sei que a coisa está afro! E que, em 2014, a bela, ao rodopiar toda dengosa pelos gramados, busque sempre a alcova branca da rede (do time adversário, naturalmente!) para a cópula com o gol.

Momento poético:

No silêncio do olhar ausente
se esconde a dor e refugia o medo
e morre o sonho que se fez finito.
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quarta-feira, 14 de março de 2012

DIA 14 DE MARÇO - DIA DA POESIA

POEMAS DE LÊDA SELMA:


O SILÊNCIO




O silêncio é sarcástico:
se cínico, entorta mentiras;
se cético, morde risos;
se sóbrio, camufla verdades
expostas em sorrisos
ocultos na alvura do nada.


PECADO DE AMOR



Zeus quedou-se em agonia
ao se apaixonar por Leda,
bela humana, mas não, deusa.
Como Zeus, o deus dos deuses,
amaria tal mundana?

Ah! que sina tão medonha,
que amor mais desvalido,
um deus, ali, combalido,
por um amor doidivanas!?

– Pecado de amor é fastio
em banquete de maçãs,
é espora mordendo esperas,
é corredeira de rio,
é palavra em carne viva,
oblação que chegou tarde –
gritou Zeus, em desvario,
carregando Leda nos sonhos.

Um vento morno de estrelas
rodopiou noite inteira,
e roubou da madrugada,
onde a lua espreguiçava,
penugens lindas de hortênsias,
para a alcova ou a mortalha,
o que o destino escolhesse.

– Destino...?! Traçarei sua trilha! –
decidido, Zeus bradou,
pronto para aliciar o destino
pelo amor da humana deusa!

E em meio a um céu de opalas,
em noite alcoviteira,
um cisne todo galante
amou Leda impunemente...

Ah! que sina venturosa,
que abastado prazer:
um deus, ali, feito em cisne,
e um templo feito em mulher!


FÚRIA POÉTICA


O poema arregalou a boca
e mostrou-me terríveis mandíbulas,
enquanto seus dentes rilhantes
trituravam-me as palavras.

E os estilhaços dos versos
fugiram desarvorados,
em rastejos se lançaram,
e sumiram dor adentro.



AMOR E SAUDADE


Não sei dos rouxinóis
que te fugiam da boca
e pousavam em meu pescoço...

Não sei das ramagens de seda
que se erguiam em teu corpo
e me cortejavam o desejo...

Não sei do suor goteirando
– de alguma calha da lua –
em nossos corpos de vidro...

Só sei desta saudade matreira
– que ainda me sacode e incita –
e deste amor quase morto.

domingo, 11 de março de 2012

Diário da Manhã - 11/3/2012

RETOQUE NO CASAMENTO...?


Lêda Selma

Padre Rocha, não afeito a excessos afetivos e a ostentações de carinho, conquistava sua messe com seu jeitão sincero e impulsivo, sem meias palavras ou entrelinhas. Não sugeria nem metaforizava, era direto e sucinto, no mais puro baianês. E se um “filho” ultrapassasse as cercas da moral, o jegue torcia as fuças, balançava o rabo e preparava o coice.

A batina, tão antiga quanto o dono, tinha a medida de sua precisão, incluído um bolso interno, aconchego para a “safada”. Calma, o padre era celibatário convicto! A tal aconchegada? A garrafa de cachaça, também conhecida como capote de pobre e suor de alambique.

Certa vez, o médico aconselhou o padre a só beber uma dose ao dia. E ele, de pronto, aquiesceu: trocou o copinho de bar por um copo americano. A dose era mesmo diária: o copo cheio. De outra, proibido de ingerir a piribita, foi flagrado com um litro da própria, no esconderijo batinal. E foi logo à justificativa: “Estão olhando atravessado por quê?! Esta pinga é para curtir pimenta malagueta; depois, só tomo o caldinho, oxente!”. Detalhe: no litro quase cheio, jazia apenas uma solitária malagueta. Ah! e ai de quem o tivesse por cachaceiro! “Cachaceiro é quem fabrica cachaça, oxente!”, furibundava.

O casamento de Virgelina, uma lindeza! Festa grande, do tamanho das terras do seu pai, rico fazendeiro.

A sociedade de Espinosa, cidadezinha que separa o norte de Minas do sudoeste baiano, no caso, minha Urandi, preparava-se para atravessar o rio Verde, divisa dos municípios, para assistir ao casamento de um seu filho ilustre com a não menos ilustre herdeira do abastado fazendeiro urandiense. E, para fugir dos imprevistos, quase sempre previsíveis (como um gole a mais do caldo da malagueta curtida), severa vigilância foi montada, durante todo o dia, nas imediações da casa paroquial.
Tudo caminhava bem até que o céu se encheu de negrume e, de sua garganta, grunhidos assustadores anunciaram um toró de meter medo.

– Vai trovoar até o dia aparecer, amanhã, com cara de abilolado – palpitou alguém.

– E bem no dia do casamento da caçula? Santo Deus, é sinal de desando, de azar! – afligiu-se a mãe da noiva.

– Vou falar com o padre – anunciou o pai, com ar de descrença.

– O casamento foi marcado para hoje? Então, será hoje – esbravejou o padre, sacudindo os paramentos como se os desamassasse.

– Mas a chuva inundou a ponte, padre, e o noivo não tem como chegar aqui...

– O que eu tenho a ver com ponte ou com chuva? Resolve isso com quem despachou a intrometida para cá, e provocou todo esse bolodório, ora! Daqui a pouco, farei a celebração. Quero todos lá, para as bandas da ponte, em uma hora.

A noiva e seus convidados, em trajes de gala respingados de lama, encontraram-se às margens do rio, cuja ponte, completamente alagada, inviabilizava qualquer transposição. Do outro lado, o noivo e seu séquito e a mesma impossibilidade.

– Se os noivos, o padre e as testemunhas estão presentes, e Deus já mostrou que também está, nada de embromação. Darei início ao ato religioso, que é da minha conta; o outro, da conta dos nubentes, seja o que a chuva quiser. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém. Estamos reunidos para a celebração do casamento de Virgelina e Constâncio. Vocês vieram aqui, isto é, ela aqui e ele lá, de livre e espontânea vontade, para se unirem em matrimônio?

– Sim, padre! – a resposta dos desolados noivos.

– Ih! esqueci a água benta! Mas serve a da chuva mesmo! Benzerei a aliança da noiva e, simbolicamente, a do noivo... O que Deus uniu não o separe o homem e, menos ainda, a chuva ou a ponte! Trate o noivo, logo, de arranjar uma pedra ou garrafa. Agora, amarre no arranjado o dinheiro devido a esta cerimônia, e jogue para cá, com muito cuidado.

– Padre, esta celebração valeu?

– Melhor, quando Deus der bom tempo, e a ponte, permissão, passarem lá na igreja para um retoque na cerimônia.

Momento poético:

Viver é extrair dos sonhos
até mesmo suas fuligens.

quinta-feira, 8 de março de 2012

MULHER SIMPLESMENTE:Lêda Selma

Carrego em mim
tantas marias
e em meu ventre,
sangue, estrelas e fomes.
Se me querem santa,
maçã ou serpente,
se me querem seda,
seios ou lua,
me mostro Maria
de todas as dores,
me torno Maria
de todas as cores,
me faço esfinge
ou mulher simplesmente.

DIA INTERNACIONAL DA MULHER

E POR QUE SIM?

Lêda Selma


É, mal principia março e, a toda a brida, chega, de batom e esmalte, botox e silicone, o cantado e recantado 8 de março, “Dia da Mulher”, dia de se outorgarem comendas, títulos e mimos àquelas que, desde o finado segundo milênio, caminham decididas, e quase imbatíveis, por trilhas nunca dantes imaginadas, em busca de espaços e conquistas. E, depois da queima dos sutiãs (bem antes do silicone), lembraram-se da lei da gravidade, imposta pelo tempo, e retornaram os indesejados para o guarda-roupa e, em consequência, à disposição dos interessados. Melhor prevenir que os ver despencar.

Um só dia é pouco. Todos. No mínimo, incontáveis. Se for para questionar a função da mulher nas várias vertentes da vida, 365 dias é absurdamente pouco. Nesse caso, melhor inventar um tempo maior. Todavia, se for só para homenageá-la... hum... os 365 já quebram o galho! Nada de dispensá-los.

Sou contra o “Dia da mulher”. Acho-o apenas alegórico, discriminatório e inócuo. Dia de luta? O que se resolve ou se decide nesse dia: a roupa para essa ou aquela solenidade? Com qual sorriso se receberá a flor? Todos os dias são de luta. E os resultados consistentes, reais e significativos vêm daí. Não somos mais minoria, sombras, espectros, marionetes... Não estamos mais “atrás de um grande homem” (e se o tal fosse pequeno, qual seria nossa posição?). Não monopolizamos mais o “trono” de “rainha do lar”, há “rei” também nele. A abolição daquela velha doutrina que relegava a mulher à categoria de “sexo frágil”, outra conquista feminina.

Um dia não nos basta mais. É bom que se lembrem de que o avental cedeu lugar ao terninho; o fogão, à mesa de trabalho; a vassoura, ao teclado (éramos rainhas ou bruxas?!), e estamos por aí, ativas, eficientes, “chefes” de família, comandando, encabeçando listas de concursos, de vestibulares, de frentes de trabalho. Presidentas, ministras já não são novidade (nem no Brasil). Mudamos valores machistas e constitucionais, rompemos as barreiras das profissões “masculinas”, tornamo-nos donas do nosso corpo, do nosso destino, do nosso prazer. Abdicamos da condição de objeto sexual (só se é, hoje, por opção ou por gosto). Conquistamos muito, mas, claro!, não ainda o bastante, bem o sabemos. Apesar disso, não há motivo para que nos discriminem com o “Dia da Mulher”. Existe o “Dia do Homem”?

No passado, a instituição de um dia, com a chancela de “protesto”, para lembrar e repudiar o massacre contra as mulheres americanas, primeira fresta de acesso feminino à contextura real, foi válida. Mais que isso: um marco que abriu os olhos do mundo para o verdadeiro “padecer no paraíso”, alcunha de ostracismo, de não-direito à genuína cidadania, de confinamento a um mundo do tamanho de uma casa, de uma mulher-mãe (abnegada, despojada, delicada...) e de mulher-esposa (virtuosa, carinhosa, prendada...). Era só o que nos permitiam ser. Abrimos as portas de inimagináveis amanhãs, escancaramos as janelas do futuro, descobrimos a vida e reivindicamos nossos legítimos direitos. No decorrer dos tempos. Não em apenas um dia: simbólico e anual.

Um senhor disse-me: “Vou exigir que a mulher abra a porta do carro e puxe a cadeira para mim. Ah! e depois, pague a conta do restaurante e do motel. Direitos iguais, deveres também”. Aviso a quem interessar possa: não conte comigo nesse item. Cavalheirismo sempre!

Independente do dia 8 de março, minha homenagem às mulheres e, em especial, à minha mãe (que saudade!), de grandezas tantas.

sábado, 3 de março de 2012

Diário da Manhã - 4/3/2012

MANCADA E TANTO

Lêda Selma

O namoro estava engrenado. Bastava que Distraildo, recém-formado em psicologia, moço direito, bonitão e de boa família, mas nem tanto assim de memória, usasse seu charme para manter sob custódia emocional a almejada Dulce, moça privilegiada pela morenice esguia espalhada corpo afora e, em especial, nas fartas ondulações, salientemente empinadas. Um primor de mulher, cujos trejeitos enredavam fantasias e incitavam desejos masculinos.

A tarde já se preparava para acomodar sua bagagem às costas, e a agenda de atendimento ainda cheia. A secretária sorria só metade do riso, mas tudo bem, por certo, reflexo do cansaço. Também pudera: Distraildo, seu patrão, havia pegado no batente às oito da manhã; uma saidinha rápida para o almoço, apenas.

Realizado na profissão e quase feliz no amor, o jovem. Bem, o quase, só para o namoro, pois o processo de conquista, aos poucos, engrenava-se; questão de tempo e de jeito, nada mais, vaticinava.

De repente, em meio a uma sessão, Distraildo sentiu a lembrança cutucá-lo: aniversário da amada, a quase namorada! Puxa vida, tal esquecimento poderia custar-lhe a chance do namoro! Que indelicadeza, sequer, ter enviado à bela moça de curvas instigantes, pelo menos, umas flores! (Meu São..., São..., Santa... ah! quem estiver mais desocupado, pronto! Seja lá o santo que for, faça um milagre rápido, segure o tempo para que haja tempo de eu remendar minha mancada, por favor! – cochicha a si mesmo em pensamento.

Desvencilhado do cliente, pede à secretária que ligue para a floricultura e encomende as mais bonitas flores. E que o entregador passe antes pela clínica para apanhar o cartão.

Todas as floriculturas estavam fechadas, avisou-lhe a secretária. – E agora, o que farei? Santos incompetentes, nem pra me darem um dedinho de ajuda! – resmunga, enquanto, na maior afobação (outro paciente já o aguardava), folheia a lista telefônica, como à cata de um milagre. E ele acontece:

– Boa-noite! Casa das Flores Feliz M...

Ainda com o coração em correria e a cabeça conturbada, nem esperou a moça, do outro lado da linha, completar a saudação.

– Preciso de umas flores, as mais bonitas, urgente! Fica a seu gosto escolher o arranjo, o buquê, o que for. Deixarei o cartãozinho, o endereço para a entrega e o cheque com minha secretária, peça ao entregador para vir à clínica antes, entende? Olhe, você é linda, tudo é lindo!

Aos pulos, desliga o telefone, cantarolando: Obrigado, São... ou Santa... ah! todos os santos, e desculpem o mau jeito de agora há pouco, sim, aquela bronca. Mas que valeu a prensa, valeu! Eu não podia facilitar, nem lhes conceder moleza, ora!

A aniversariante, Dulce, estava eufórica. Muitas flores, muitos presentes, muitas presenças, enfim, um animado encontro de amigos. Até que, súbito, Dulce é chamada à porta. Desajeitado por sentir-se intruso, e pressentir que algo estava errado, o rapaz é direto:

– Vim lhe entregar essas flores, moça. O cartão está junto. Não tenho nada com isso.

Dulce empalidece ao ver aquela imensa coroa, enfaixada com os seguintes dizeres:
“Vida eterna e muita paz!”. E, depois de ler o tal cartão, desmaia. Alguém o encontra no chão e põe-se a lê-lo: “As flores representam tudo o que lhe desejo nesse dia especial: que a envolvam como em um abraço e lhe cubram o corpo com suas pétalas perfumadas, até que sinta o coração se aquietar e a alma voar para um passeio ao sol; então, com os olhos fechados, encha de luz o momento tocado pela imensidão, e chegue à estrela. Saudades. Com amor, Distraildo”.

O rapaz nunca entendeu por que, ao chegar para a festa, já não havia festa. Tampouco, a esquiva da amada, sempre que tentou se aproximar dela. Ofendido, desistiu. Não sem, antes, concluir: Mulher é raça estranha. E ainda dizem que homem não sabe ser romântico. Nem as flores, nem as palavras melosas do cartão emocionaram aquela infeliz. Para mim, ela está morta. Morreu no próprio dia do aniversário.

Momento poético:

Há sempre um sol
dentro do sonho.
E uma solidão
em cada silêncio.