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quarta-feira, 13 de julho de 2011

Diário da Manhã - COISAS DE UM PIO - Lêda Selma

COISAS DE UM PIO





Tudo começou em forma de mal presságio e de gritos: “Piado de coruja entrecortado de choramingos da chuva. Ouviram? Deus nos acuda!”.
A noite, de um azulmarinho sisudo, aconchegava o vento acerado e lamuriante que empurrava a janela para se acomodar em algum canto do quarto. De repente, a correria se fez anunciar. “Cruz credo!”, “Crendeuspai!”, “Maria protegei-nos!” e tantas outras benzeções e falações arrulhadas pelo mulherame esparramado pela casa. E o arrepio, então, correu solto e penetrando-lhes as longices mais secretas.
– Eu senti a presença da malfazeja aqui, agorinha mesmo. Credencruz! Eu tô desconfiada que a hospedeira do além soverteu lá da fundeza do abisso e veio se abancar entre nós. Aquele pio... Arre! rodopiou em meus ouvidos e me fez tremer feito capim à mercê do fogo – vociferou Inocência, alarmada com o sucedido.
– Ih! então, se a tal veio, não há de perder a pernada! E se piou, tá piado. Alguém aqui ganhou uma passagem pessoal, intransferível e sem o carimbo da volta. Que mal lhes pergunte, amigas, de quem é a vez, de quem? Minha sei que não é, pois acabei de ser checapeada de dentro pra fora e vice-versa pelo clínico geral e ele me garantiu uma saúde de aço. Inoxidável, ainda por cima. Portanto, a escolhida da desconjurada é uma de vocês. Segundo os entendidos, quem ouviu o pio primeiro é o passageiro do indesejável voo.
– Dizem que pio de coruja é a música predileta da malvinda... Felizmente, eu não ouvi nada.
– Nem eu. E a primeira que ouviu o piado vai dançar a Valsa do adeus com ela!
– E depois embarca. Ou emborca. Sei lá. Acho que tanto faz.
– Credo, que gente mais agourenta! Tudo isso só por causa de um pio de coruja? Um piozinho ouvido assim, feito chiado de vento, ao acaso, mas não por mim, com a graça de Deus.
– Ao acaso? Pois tá mais é para ocaso, isto sim. Pio definitivo, eternal. Que não ouvi, mas que foi ouvido e anunciado por alguém... de nome Inocência...
– Um pio com remetente e destinatário. Um pio certeiro. Para uma de vocês, pois também não ouvi nenhum.
– Vejam, a Amandina desmaiou! Então, foi ela quem ouviu primeiro, pronto!
– Amandina do Orfeu? Ufa, antes ela do que eu!
– O que houve com a desmaiada, gente, por Deus?!
– Pois é, Deus. Ele a escolheu. Convite irrecusável, pelo que percebo, ou melhor, pelo que ela percebeu. E sem direito a acompanhante.
– Será? Sei não, tô achando que a Branca tá mais desbotada, descalibrada, com cara de quem viu o que não queria... E como treme e retreme! E os olhos parecem desorbitados, sem vida...
– E ali, amuada num canto, o semblante muito esfalfado... A vez, concordo, é dela, sem dúvida.
– Esperem aí: foi a Inocência quem gritou primeiro, ainda com o pio a lhe escorrer pelos ouvidos.
– Boa lembrança... Mas e quem desmaiou? Amandina! Preparação para o embarque?
– Ou desembarque? Sei não, acho que, pelo menos, essas duas estão na fila... Vou espiar, me escorar na certeza e garantir a notícia. Já volto.
– Socorro! Ela tá piando, isto é, chegando, pior ainda!
– Ela quem?
– Ouçam os passos, ou seja, os ossos da funesta.
– Coruja piou, a foice baixou.
– Não disse? Era mesmo a enxofrenta, a peçonhenta. E aquele pio, o sinal.
– E se a pestilenta, pra ganhar tempo, fizer o serviço por atacado?
– Periga sim... Ai, ai, ai, fazer o quê?!
– Vou me prevenir com uma prece em causa própria: “Ó, Senhor da Boa Morte, recebei com hospitalidade uma dessas duas, ou as duas, ou qualquer outra do Vosso agrado, desde que não, esta serva que Vos fala, claro! E, na rabeira do ensejo, peço-Vos, antecipadamente, adiamento de minha hora, acrescido de algumas prorrogações e substituições. E se Vossa agenda estiver em ordem alfabética, pode deixar meu nome pro final. Sabe, sempre preferi Zabadia, bem mais bonito e sonoro que Abadia e o melhor, mais seguro. Assim, seja feita a minha vontade (com todo o respeito, Pai). Amém”.
O pio da coruja? Apenas, um engano auditivo. Na verdade, o velho assobio de certo amado, sumido há tempos, e reaparecido assim, num rompante, na garupa da surpresa. É, também de alegria se desmaia... Amandina que o diga!

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