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quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

UM SONO SOSSEGADO - DM 11/12/10

UM SONO SOSSEGADO


Lêda Selma


– É, doutora-juíza, meu caso é complicado. Sou homem sério, maduro e, na verdade, carecia de uma companheira, moça honesta, voltada para as coisas do lar e com pensamentos de asas curtinhas, bem curtinhas! Se necessário, cortadas bem rente que é pra não deixar a mente sair voando por aí, perdida na vadiagem. Pensamento é um perigo, é atalho pra perdição – falou pausada e arrastadamente um senhor de porte franzino, voz e gestos trêmulos e olhos de um marrom cansado e sonolento.
A juíza, uma cinquentona insossa, de ar austero e nenhuma simpatia, esfregou as mãos como se espantasse a impaciência, mexeu em alguns papéis sobre a mesa, como a demonstrar pressa, e olhou fixamente para o quereloso, exigindo-lhe objetividade:
– Bem, o que posso fazer pelo senhor? Se é que posso...
E ele, meio sem jeito, tentando fugir da impertinência da magistrada, encantoou a timidez, pigarreou duas vezes e, encolhendo-se na cadeira, respirou fundo, desviou o olhar e recomeçou:
– Fiquei viúvo há mais de vinte anos, meritíssima, e, desde então, a tristeza se acomodou em meu peito. Assim como o peso, a idade aumentou, a velhice chegou implacável, na rapidez do tempo (já virei os oitenta e quatro), a solidão, dia a dia, acochou mais e mais, a necessidade de uma companheira para cuidar de mim não parou de esgoelar noite a dentro, dia afora... e, então, resolvi procurar alguém pra sossegar todo o meu desassossego. A senhora sabe, quem procura, quase sempre acha, pois é, achei: uma sessentona simpática, discreta, recatada, evangélica, daquelas com a bíblia sempre nas mãos, olhos fincados no chão, tranquila por demais, quero dizer, durante os dois meses de namoro. Foi só a gente se casar, e ela se endiabrou, doutora, se revelou gananciosa pelas coisas do sexo, uma perdulária sexual compulsiva; olhe, não sei onde a desregrada arranja tanta energia pra gastar, não sei, a senhora entende?
– Não, não entendo; se o senhor puder ser objetivo, quem sabe?!
– Bem, por conta dessa gulodice, a faminta não me dá mais trégua noite alguma, nem nas tardes pares da semana, que, aliás, são mais que as ímpares. Diz, esbravejando, que quer tirar a diferença do tempo perdido no marasmo da virgindade, que exige seus direitos de mulher casada, e que preciso cumprir meus deveres de marido, conforme a senhora falou no dia do casamento, e eu prometi. A bem da verdade, meritíssima, não me lembro disso... Também, surdo dos ouvidos e da memória, como sempre fui em certos momentos...
– Mas, e daí? – retrucou, irritada, a juíza.
– E daí é que a gananciosa solicita meus préstimos carnais com uma pontualidade e sofreguidão constrangedoras, de arrepiar até os cabelos que me faltam. E eu lhe pergunto, doutora-juíza: tenho lá idade para tais extravagâncias, para trabalhos forçados e até horas-extras?! Além do mais, não me casei pra ser consumido e sim, consolado.
– O senhor conclua logo o motivo de sua vinda, pois ainda não entendi o que posso fazer...
– Anular o casamento. A lei tem que ter misericórdia de mim, senão, qualquer noite dessas, durmo aqui e acordo do lado de lá, porque meu coração não tem mais fôlego pra tantas danuras.
– Não é assim, meu senhor. Eu não posso ir anulando casamentos...
– Pode, sim! A senhora fez o casamento, desaguou todo aquele palavrório, me fez prometer o que nem ouvi, então, pode muito bem desfalar o falado, e eu desprometer o prometido (que, a bem da verdade, se prometi, foi sem querer). A senhora não me entendeu, meritíssima: na realidade, eu só queria me casar pra ter uma mulher relando em mim enquanto eu dormia um sono sossegado. Afinal, meu patrimônio sexual foi tombado, há muito, e não há lei que reverta isso.

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