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sábado, 9 de outubro de 2010

CRÔNICA DE SÁBADO, DIA 9/10 - DM

DESCOMUNICAÇÃO DAS BRAVAS

Lêda Selma

Tudo começou ainda na infância. O menino não tinha sossego. A tosse chegava num rompante, troteava peito adentro, escapulia boca afora, um suplício que o sacolejava impiedosamente. Zelosa, a mãe não se descuidava: simpatias, benzeções, preces, promessas, tudo o que a fé e as crendices lhe apontavam como solução.
Já dizia sua trisavó: “Mais vale uma má esperança que um bom desengano”. Apoiada nisso, partiu para a lida das crendices: capturou um peixe, cuspiu em sua boca, e o devolveu ao rio, vivo, como mandava o ritual. Por precaução, engatou logo uma outra: escreveu a Ave-Maria num papel, introduziu-o no patuá de cor indefinida, e pendeu-o no pescoço do cachorro; ali ficaria até que o coitado do animal se libertasse dele naturalmente. Todavia, a mais estapafúrdia das doidices, com o fito de acabar com aquela tosse ladrante, veio pouco tempo depois da morte do cachorro (com patuá e tudo o mais). Não é que a aflita mãe colocou o menino para tossir no ouvido da imagem de São Braz? Sim, desassossegando o santo, ele haveria de milagrear em favor do filho, acreditava. Por analogia, deduziu: se o santo era especialista em engasgo, entenderia de tosse convulsa, a tal tosse comprida, afinal, eram áreas afins, meio aparentadas, e, além do mais, todo santo tinha por obrigação ser bom em conhecimentos gerais.
A palavra de ordem, portanto, para aquela desesperada mãe, “tentar”. Sem medidas. Sem economia de sacrifícios. Tudo valia a pena se a tosse não fosse pequena (desculpe-me o trocadilho, Fernando Pessoa), e a do menino era enorme. O filho precisava livrar-se daquele “regougo infernento”. Se necessário, flagelaria São Braz, sem misericórdia, até que agisse de forma competente.
Alguns meses corridos, e a tosse, já nem tão comprida, espaçava-se e, aos poucos, enfraquecia-se. O menino, apenas, vez ou outra, tossicava, “tossinha de cemitério”, afirmava a vizinha. E a mãe comemorava seus feitos com preces de gratidão. A coqueluche, finalmente, estava derrotada em tempo recorde. E graças aos santos e às mandingas.
Passaram-se os tempos, o menino cresceu, virou um homem atarracado e franzino, de pele bacenta e cabelos esporádicos (modelo nem ficam nem desocupam a telha). De repente, ei-la, a tosse, ressurgida com novo status: bronquite asmática. “Culpa da tosse comprida mal-curada”, retumbava, incansável, a avó. “Nem tudo foi feito. Faltou cortar um pedacinho da parte branca da pena do urubu, introduzi-la num amuleto e pendurá-lo no pescoço do coqueluchento”, arrematava insistente.
O certo é que a tosse, de volta, não dava trégua àquele homem de olhar vermelho, olhar de meu Deus, cadê meu fôlego?! Um fôlego cambaleante, raquítico, feito bêbado à mercê da intuição para encontrar o caminho de casa. Um fôlego de deixar qualquer um sem fôlego.
Ano após ano, Troncoso continuava com crises de asmas, cansaço e falta de ar. Aos arrancos, a tosse não o deixava dormir. Uma consumição dividida com a mulher que, conforme prometeu ao marido, instigada pelo padre, no dia do casamento, lhe seria “fiel na saúde e na doença”. Casada, pois, em comunhão também de tosse, fazer o quê, senão uma simpatia? Colheu um punhado de alecrim, deixou-o secar e, depois, amassou-o. Em seguida, colocou-o em um cachimbo virgem. Cada vez que a asma se manifestasse, o marido tossegoso fumaria o alecrim.
Não tardou muito, o médico foi chamado; e intrigou-se com o cachimbo sobre a mesinha de cabeceira. Pensou logo no tabaco.
– Olhe, tente fumar uma vez por dia.
– Fumar, é? Uma..?! Vou tentar, vai ser difícil, mas se é o doutor quem diz...
Dez dias depois, e Troncoso pior.
– Foi complicado, doutor, mas consegui fumar só um.
O médico, ao auscultar-lhe os pulmões, confirmou a piora.
– Doutor, acho que a culpa é do cigarro.
– Sem dúvida. Foi justo por isso que lhe pedi que diminuísse as fumadas...
– Diminuísse?! Fiz foi aumentar, doutor! Afinal, eu não fumava, só fumei agora por prescrição médica, ora!

Um comentário:

  1. Bom e hilário de tirar o fôlego. Não tive coqueluche, mas tenho asma. Sei do que fala. Deveria ser leitura obrigatória na escola, para rir, divertir r ensinar. Gostei muito.

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