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quarta-feira, 28 de julho de 2010

CRÔNICAS

ANDINO, O DISTRAÍDO

Lêda Selma

Andino, caminhoneiro bonachão, feio mais que doença de pele, sempre acompanhado do amigo e protetor São Cristóvão, rodava por essas terras de ninguém, a esgoelar as músicas tocadas no rádio. Semanas e semanas na estrada, escoltado pela mesma solidão.
Numa dessas viagens, fugindo de seu antigo hábito de só pegar na estrada mulher aparelhada de qualidades visuais, deu carona a um senhor de meia idade, tipo bronco, de aparência serena, apesar de um pouco maltratada. De imediato, percebeu tratar-se de um homem econômico nas palavras e na alegria. Mas, pensando no percurso longo a ser vencido, resolveu tirar proveito da caridade cometida e, de pronto, liberou a língua para o pontapé inicial das palavras; e desamarrou uma conversinha insossa.
Assim, enquanto a viagem comia os quilômetros, os dois homens continuavam a triturar frases, bisbilhotados por uma tímida e pubescente lua. E, lá pelas tantas, já com o sono a lhes pisar os olhos, a cidade-destino do caroneiro apontou luminosa, como se preparada para festa. Com um encorpado aceno de adeus, o favorecido agradeceu a cortesia de Andino e tomou seu rumo.
Alguns metros, à frente, o caminhoneiro passou a mão pelo bolso da calça e sentiu a ausência da carteira. Às carreiras, saiu atrás do desconhecido. Alcançado, o homem assustou-se com a puxada, de supetão, do companheiro de percurso.
– Tu é um sujeito lascado, ô cabra, se não me devolver, sem piscanejar, a carteira que tu me roubou. Vou te dar uma pisa tão grande, mesmo depois de devolvida a carteira, que nunca mais tu vai esquecer a lição – berrou Andino, com a mão esquerda acintosamente estendida e a outra, ameaçadora.
– O que é isso, amigo, tá me estranhando? Não entendo sua ira, nem sei que história é essa de carteira roubada. Mesmo chateado, lhe permito me revistar pra resolver sua dúvida.
– Dúvida, infeliz? Certeza, seu rato de estrada! – esbravejou o caminhoneiro, enquanto violava os bolsos do acusado, à procura da desaparecida que, de repente, apareceu.
– Malandro dos infernos, então, é assim que tu me agradece? Rouba minha carteira e ainda te faz de vítima, descarado? Só não te entrego pra polícia porque não quero mais atraso na viagem, senão, tu ia ver com quantos ferros se faz uma grade de cadeia.
– Pelo amor de Deus, moço, ganhei essa carteira de um filho, no último Natal. Vamos procurar a do amigo, deve estar na boleia do caminhão, caída embaixo do banco...
– Além de ladrão, cínico. Vai-te embora, cabra! – esbravejou Andino, dando as costas ao estupefato suspeito.
Humilhado, o caroneiro afastou-se, prometendo, com a altivez da consciência em paz, que as coisas não ficariam assim. Iria ao delegado.
A sirene policial, logo, alcançou Andino.
– Boa-noite, sente-se, por favor! – disse o delegado.
– Pelo visto, pra mim, nem tão boa – retrucou Andino.
– O senhor foi acusado de roubar uma carteira.
– Fui o quê?! Tenha paciência, doutor! Eu, sim, tive a carteira roubada, mas já recuperei, por isso não dei queixa. São Cristóvão é testemunha (falando no senhor, que cochilão, hem?! Plantonista que se preze não dorme em serviço!) – pensou baixinho para não desmoralizar o amigo santo.
– Quem é Honestino Severo? – indagou o delegado, ao ler os documentos retirados da tal carteira.
– Sou eu, delegado!
– Honestino...? – desesperou-se o caminhoneiro.
– O que tem a dizer, senhor...
– Andino dos Santos. A dizer? Bem... estou desentendido, doutor.
– E o senhor Honestino?
– Recuperei a honra e a carteira. Retiro a queixa. Apesar de tudo, devo um favor a esse homem.
De volta ao lar, dias depois, ainda confuso, aporrinhado, com a saudade dos filhos e da mulher a lhe judiar o coração, Andino foi recebido com festa pela família também saudosa. E, após um xodozinho da patroa, recebeu um carinhoso pito:
– Homem de Deus, como é que tu viaja e não leva a carteira? Achei a esquecida bem aqui, olhe, em cima do banco. Eta homem danado de distraído este meu pau de arara, oxe!


O BEIJA-FLOR E OS BOMBEIROS


Lêda Selma

Já disse e redisse que, se não fosse gente, gostaria de ser estrela ou beija-flor. E também é sabido que sou fascinada por esse pássaro minúsculo, de modos elegantes e irrequietos, sugador de néctar e beijador de flores. Ah! fico enfeitiçada com o bater musical de asas do equilibrista da natureza! É tanto o meu fascínio que sempre acho um jeito de entremeá-lo em meus poemas: “Poesia é um colibri lindourado/com hálito de primavera”. Ou ainda: “Nos vincos de minha boca,/beija-flor colhe palavras/e poliniza saudades(...)”. Em um poema dramático, disse ao Júnior: “Sob as sombras da tarde louca,/senti teu perfume, filho,/naquele beijo tão branco./E só então compreendi:/beija-flor é alminha de anjo”.

Tudo aconteceu numa segunda- feira. Apesar da chuva, fui ao salão de beleza dar um jeito nos cabelos. Mal cheguei, uma das profissionais, disse-me: “Aquele beija-flor, há horas, entrou aqui, voou para o alto e não consegue descer para ir embora”. Olhei para a direção por ela indicada (credo, que pé direito altíssimo o da tal sala!?) e vi o pobrezinho voando tortamente, de um lado para o outro, perdido e estressado. A transparência do vidro aturdia-o e, como se achasse possível transpô-lo, precipitava-se repetidamente sobre ele, desesperado.

De pronto, sugeri: uma vasilha com água açucarada, sobre o balcão, perto da porta, para induzi-lo a achar a saída. Aflitas, ficamos na torcida, à espera da perspicácia olfativa do miudinho. O açúcar não o fez descer. Nova estratégia: colher umas flores na árvore em frente e avizinhá-las da água açucarada. Mais ansiedade e... nada! Continuava confuso, batendo no vidro, voando zonzamente, cansaço à mostra, risco de se machucar... E eu, com os cabelos lambuzados de tintura, legítimo arremedo de mim, maquinava uma ajuda mais eficiente. E meu pensamento insistia: “Beija-flor é alminha de anjo”. Ai, meu Deus, e se for de um anjinho distraído, que se desgarrou dos colegas por descuido? Uma ação mais decisiva, com jeito de sólida, urgia.

Os bombeiros! – decidi, já com o 193 digitado no celular. Um cabo da Corporação atendeu-me. Contei-lhe o drama do beija-flor e fui aconselhada a aguardar mais um pouco, na esperança de que a água açucarada e as flores ainda cumprissem a função por nós desejada. Uma hora depois, liguei novamente. Solícito, transferiu a ligação para sua superiora. Condoída com a delicada situação do miudinho, prometeu-me falar com um superior mais graduado e, se autorizada, destacaria um carro e uma equipe para o resgate do beija-flor. Emocionadas, aguardamos. E o miudinho ali, de lá pra cá, colidindo com a vidraça, desalentado e exaurido, afinal, há horas, não se alimentava e suas forças, por certo, já lhe minavam a resistência.

De repente... Viva! O beija-flor desceu, sugou a flor, tomou o rumo da porta e, qual um foguete, desapareceu; enquanto isso, outra profissional anunciava: “Os bombeiros chegaram!”. Constrangida, só me ocorreu perguntar aos dois sargentos a um cabo e ao motorista: por acaso, não toparam com o beija-flor aí fora? Ele acabou de passar por vocês!

É claro que lhes dei as explicações devidas. Como poderia, convenhamos, prever que o beija-flor me faria tamanha ursada?Uma aprontação e tanto, sem dúvida. Sim, porque durante horas ele se debateu, sofreu, não achou o caminho, e, assim, sem mais nem menos, justo quando seus salvadores chegaram, o fulaninho deixa-me no maior vexame?! Francamente!

Se toda instituição brasileira pudesse orgulhar-se de sua corporação e dos serviços prestados à comunidade, como o Corpo de Bombeiros, o Brasil seria bem mais sério, digno e grandioso. Afinal, é comovente o desprendimento desses abnegados guardiões da vida. São seres abençoados, a quem Deus iluminou ao lhes confiar o sagrado ofício da solidariedade e do verdadeiro amor ao próximo, mesmo que o próximo seja apenas um beija-flor.

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